Sobre a polêmica da Lei Rouanet para a moda

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Muito tem sido falado acerca da recente aprovação da Lei Rouanet para a realização dos desfiles de Ronaldo Fraga em São Paulo, Alexandre Herchcovitch em Nova York e, especialmente, de Pedro Lourenço em Paris. Muitos dos que falam conhecem pouco o universo da moda, e muitos mesmo acreditam que moda é uma coisa superficial… a segunda maior indústria do mundo, na frente de armamentos, e preocupação que todos enfrentam ao se levantar e pensar ‘com que roupa eu vou?’ demonstram muito rapidamente como falar de moda é mais complexo.
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No entanto, temos que olhar criticamente para esse evento e perceber como diversas coisas se revelam. Cada um dos criadores tem o direito de arrecadar mais de 2 milhões de reais via Lei Rouanet. Os valores por si só já começam a ser escandalosos, pois segundo O Globo, eles estão acima do que outros criadores gastam para fazer desfiles em Paris. Podemos pensar que isso é abusivo, para a ministra da cultura Marta Suplicy não, mas para boa parte do país, é. Não há como negar.
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O segundo ponto é que o CNIC (Comissão Nacional de Incentivo à Cultura) foi desrespeitado. Segundo a ministra, a comissão não entendeu o conceito de moda como cultura, e como Suplicy é amparada pela lei para reverter a situação e fazer algo que julga ser mais relevante, passou “por cima” da autoridade do conselho. Vamos lembrar aqui: mesmo com valores acima da média Alexandre Herchcovitch e Ronaldo Fraga foram aceitos, portanto, legitimados, pelo mesmo CNIC que a ministra não respeitou quando foi o caso de Pedro Lourenço. Ainda que afirmando acertadamente que a moda contribui para o soft power do Brasil (concordamos com isso, sem dúvida!), sua atitude autoritária em desmerecer os membros da comissão foi, no mínimo, grosseira e leviana.
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A moda, pode, é claro, contribuir para o soft power do país. O soft power é, segundo seu teórico Joseph Nye, uma nação influenciar comportamentos através de seu viés ideológico e cultural, sem uso de poder bélico. O Brasil, justamente por não concentrar grandes investimentos em hard power, pode e deve estabelecer seu poder cultural ao redor do mundo. O lifestyle brasileiro tipo exportação (leia-se “carioca”, principalmente), já começa a ganhar mais complexidade e tem no “latino urbano”, no nordestino, no gaúcho outras formas de estilo de vida que também começam ser tipo exportação. Soft Power é uma forma não combativa de nosso país se afirmar em um mundo globalizado.
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Desfile Ronaldo Fraga verão 2014. Ele foi um dos estilistas fomentados pela lei. Foto: FFW.

Para a moda do Brasil, incentivos culturais são positivos, e mesmo necessários. Associações e cooperativas de artesãos, novos criadores, pesquisas de moda enquanto expressão cultural, são importantíssimas nesse nosso momento. Passa a ser ruim apenas quando um modelo específico de se fazer moda, de pouco impacto no processo produtivo de todo o Sistema Moda Brasil (leia-se: têxtil-confeccionista, couro-calçadista e gemas, joias e bijuteria) é o único a ganhar espaço. A lei, para prestar serviço à moda nacional, deve funcionar desde as pequenas cooperativas de artesanato até grandes empresas, passando, também, pelos desfiles de estilistas renomados midiaticamente.
Falar em “moda brasileira” é adjetivar a nossa produção e criatividade em moda de uma maneira um tanto quanto perigosa. O Brasil é plural, buscar qualquer tipo de ‘essência’ é perigoso. Restringindo-a a falar sobre temas eminentemente ditos brasileiros… exportar nosso estilo de vida é exportar moda feita no Brasil, dentro de um ambiente rico criativamente e sustentável social, econômica e ambientalmente. Feito no e a partir do Brasil para o mundo (inclusive nós mesmos!).
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Exportar nosso estilo de vida é exportar moda feita no Brasil, dentro de um ambiente rico criativamente e sustentável social, econômica e ambientalmente.
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O recurso de sempre olhar para o universo popular como “fonte de inspiração'” e depois nada retornar ao mesmo talvez seja um dos principais problemas desta prática de buscar ‘as raízes’. Lembro de quando li Tempos de Grossura de Lina Bo Bardi (leitura que recomendo a todos que falam em trabalhar com artesanato, arte popular, referências populares, mas vale para todos no país que lidam diariamente como moda e design), em como a autora deixa claro que a estética da arte popular é pujante e criativa porque revela as mazelas de nossa sociedade. Também fala como esses produtores eminentemente criativos “se viram” para conseguir sobreviver frente a uma elite que os ignora e que quando os olha os vê de maneira distanciada, quase como se fosse um estrangeiro.
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Firmar o país como força de soft power é criar políticas públicas para disseminar em escala colossal os valores de nosso país para além de nossas fronteiras. É tornar imprescindível para estrangeiros pensar: como um brasileiro faria isso? ou aquilo?.  Essa política demonstrada pela ministra está levando em consideração as indústrias dos setores de moda estão sendo dizimadas em diversos níveis? Ou ajuda a moda do Brasil a concorrer com a China, Vietnã ou Bangladesh? Esta mudando as relações de trabalho dentro do universo da moda que são sempre foco de escândalos em nosso país?
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Se falar em soft power é falar em firmar valores no exterior… Quais estão sendo firmados pela ministra com essa ação autoritária? Autoritarismo travestido de Carmem Miranda? Valores astronômicos e relações pessoais vindo em primeiro lugar? Não é justamente isso que nós queremos mudar no país?
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O objetivo da Lei Rouanet é fomentar a cultura de forma que algo seja trazido de volta para a sociedade. Ela deve se espraiar para todos.
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Artigo por Patricia Sant’Anna (patricia@tendere.com.br)
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