Vitrine global da fantasia

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A criatividade e o impacto da alta-costura servem para chamar a atenção do mundo ­ e legitimar os preços do mercado do luxo
Duas vezes por ano, em janeiro e julho, vestidos suntuosos e extravagantes aparecem na televisão, nas revistas, nos jornais de todo o mundo. A sofisticação, a profusão de detalhes e a beleza das roupas arrancam suspiros. Ou gritos de incompreensão diante da fantasia desatinada das peças, que às vezes beira a provocação pura e simples – como a “noiva africana” na foto ao lado, que parece saída da cabeça de um Picasso experimentando com substâncias proibidas mas foi apenas mais um dos atrevimentos do estilista Jean-Paul Gaultier. “Para que servem essas roupas?”, bradam os inconformados.
PICASSO
PSICODÉLICO – A “noiva africana” de Jean-Paul Gaultier, exemplo da
liberdade de arriscar e do virtuosismo dos criadores: “A alta-costura não
é feita para vender, mas para encantar e aprimorar a moda”.
Os desfiles de alta-costura são o ápice da criatividade, a vitrine global e o momento máximo de autocelebração do mundo da moda. As grandes grifes costumam apresentar entre seis e nove coleções femininas por ano. Mas apenas as duas de alta-costura, mostradas sempre em Paris, têm repercussão planetária garantida. Só nelas a habilidade de fazer uma roupa artesanalmente – o que os franceses chamam de savoir-faire – é levada ao extremo e pode ser admirada da ponta do chapéu ao bico do sapato, no corte e no caimento, no acabamento, no bordado, nos laços, nas plumas. As coleções de prêt–porter, que depois das passarelas são replicadas em escala industrial e distribuídas nas lojas por todo o mundo, podem fazer sucesso, vender bem ou mesmo passar despercebidas, sem grandes conseqüências. Não as de alta-costura. É por isso que as maisons chegam a gastar o equivalente a 3,5 milhões de reais em um desfile de vinte minutos. É por isso que seus estilistas têm a liberdade de arriscar, de esbanjar virtuosismo e inventividade, de mostrar manequins com máscaras africanas, vestes de faraós egípcios ou em trajes de mendigos. A consultoria americana Right Angle Group calcula que um desfile desses gere uma cobertura nos meios de comunicação que, se paga, sairia por oito vezes mais do que o custo do desfile – isso apenas nas revistas dos Estados Unidos.
A alta-costura serve para duas coisas: chamar a atenção do mundo todo para determinada marca e atrair a seus ateliês um punhado de clientes afortunadas, capazes de encomendar vestidos iguais ou inspirados nos dos desfiles, só que feitos sob medida para elas. A primeira função é de longe a mais importante. A esta altura todo mundo sabe que as grandes marcas de luxo vivem majoritariamente de vender perfumes, cosméticos e acessórios, tudo a preços olímpicos. A alta-costura alimenta a imagem de luxo desses produtos e, como se diz no jargão do mercado, legitima seus preços. “A atividade alta-costura como venda de vestidos caríssimos para bailes que não existem mais é obsoleta, mas como geradora de desejos e promotora do consumo ela é imbatível”, afirma o consultor de moda francês Jean-Jacques Picart. No sábado seguinte ao desfile de alta-costura do inverno passado, apenas a butique da Christian Dior na Avenida Montaigne, em Paris, recebeu a visita de 5 000 pessoas. A maioria sai com alguma coisa nas mãos – no mínimo um batonzinho. 
O termo alta-costura é juridicamente protegido. Só pode dizer que a faz quem atende aos critérios estabelecidos pela Câmara Sindical da Alta-Costura, criada no século XIX. Em 1858, o inglês Charles Frederick Worth abriu um ateliê na Rue de la Paix, em Paris, e convidou clientes como a imperatriz Eugenia, mulher de Napoleão III, para ver seus vestidos em modelos de carne e osso, uma novidade. Com isso, inventou tanto os desfiles de moda como a alta-costura. Anos depois, Worth e seu filho criaram a Câmara Sindical e os requisitos para quem quisesse integrá-la. Hoje, as maisons devem ter uma cota básica de funcionários fixos que se dedicam apenas à alta-costura e apresentar duas coleções por ano com no mínimo 25 modelos cada uma. Cada peça é inteiramente feita a mão, a única maneira de garantir que o avesso será tão bonito e bem-acabado quanto o direito, um dogma do ofício. É também exclusiva, ou praticamente. Um mesmo vestido terá no máximo duas clientes, sempre de continentes diferentes.
Em geral, a roupa nasce de um croqui, que será interpretado pela funcionária chamada première de l’atelier num protótipo feito de tecido comum. Ao contrário das roupas prêt–porter, não há moldes de papel para orientar o corte. A roupa é cortada e alinhavada diretamente num manequim de madeira, preparado a partir das medidas precisas da cliente. A primeira prova é feita com o protótipo. Só então o tecido definitivo será cortado e montado pelas costureiras, chamadas de petites mains, mãozinhas. Seguem-se mais duas provas até a roupa ser entregue. Nas maisons, em geral, existem dois ateliês, o flou, onde são feitos os trajes de noite, sobretudo vestidos, e o tailleur, para blusas e saias. “Sãos ‘mãos’ diferentes: a costureira de um ateliê não é capaz de fazer bem uma peça do outro, e vice-versa”, explica Catherine Rivière, diretora de alta-costura da Dior. Um tailleur demora 45 dias para ficar pronto. “Se a cliente estiver sempre disponível para as provas”, ressalta Catherine, que atende pessoalmente as 200 clientes habituais da Dior alta-costura. Ela e suas assistentes viajam constantemente com vestidos e protótipos de prova na bagagem. “Metade de nossas clientes é do Oriente”, diz.
ELEGÂNCIA
NA ESTRÉIA – Vestido da primeira coleção de alta-costura de Giorgio Armani:
“Clientes não compravam porque queriam ajustes de tamanho ou de modelo.
Agora, pedidos atendidos”

O número de clientes de alta-costura de todas as grifes reunidas não é muito maior do que as 200 privilegiadas que fazem suas encomendas na Dior. Pouquíssimas são as mulheres que, como a rainha Sirikit, da Tailândia, podem encomendar 25 trajes num ano. E raras são as oportunidades, como o casamento do rei do Marrocos, com 2 000 convidados, três dias de recepções e trinta vestidos só para a noiva. A alta-costura é deficitária em várias maisons porque o preço dos vestidos – de 35 000 a 350 000 reais – muitas vezes não cobre o custo dos materiais e da mão-de-obra (que inclui o estilista, claro), ambos especializadíssimos e caríssimos. Pascal Morand, economista e diretor do Instituto Francês de Moda, estima que nas poucas empresas em que a alta-costura resiste a atividade represente entre 2% e 3% do faturamento geral. Mesmo o sucesso nessa área não garante a sobrevivência dessa espécie ameaçada. O exemplo mais recente foi o de Christian Lacroix, o mestre da combinação de padronagens e das cores ibericamente fulgurantes. Embora as encomendas de vestidos de alta-costura fossem consideráveis, ele dava prejuízo na área de acessórios e prêt–porter e acabou vendido pelo grupo LVMH. 
EXPLOSÃO NA
DESPEDIDA – O último desfile de Christian Lacroix, mestre das cores
exuberantes: no fim da II Guerra, havia 100 casas que faziam alta-costura;
hoje, são menos de dez

Ainda assim, a empresa suportou as contas no vermelho durante anos, aguardando o retorno indireto. “A alta-costura é o que justifica a sofisticação do nosso prêt–porter”, costuma dizer a presidente da Chanel, Françoise Montenay. François Lesage, cuja oficina de bordado trabalha para os grandes criadores há quase 150 anos, resume: “A alta-costura não é feita para vender; a noção de preço não faz parte do jogo. Ela é um monumento cultural que serve para encantar e aprimorar a moda, só”. Nos dois meses que antecedem os desfiles, os ateliês das maisons param com as encomendas para se dedicar às roupas cujo único objetivo é deslumbrar. Na Dior, o número de costureiras passa das setenta regulares para 100. No último desfile Chanel, um único vestido foi trabalhado durante 450 horas pelas costureiras da casa e consumiu mais 350 para ser bordado no ateliê de monsieur Lesage. “A alta-costura é um laboratório onde testamos a viabilidade de novas idéias e técnicas. Com tantas maisons deixando a atividade, é uma chance poder continuar mostrando toda a habilidade dos ateliês e realmente deixar a imaginação voar”, disse John Galliano a VEJA .
No fim da II Guerra Mundial, havia mais de 100 maisons que faziam alta-costura. Hoje são menos de dez. Em 2004, houve vinte desfiles em quatro dias. Neste ano, dezesseis em três dias. A cada véspera das semanas de desfile, a imprensa de moda faz reportagens sobre a crise da alta-costura e se pergunta se ela está acabando. Cada desistência é contabilizada como uma pá de cal. E foram muitas recentemente: Yves Saint Laurent, Emanuel Ungaro, Givenchy, Balmain, Donatella Versace, Hanae Mori. Lacroix, com nova direção, muito provavelmente será o próximo. Agora, os pilares do setor são Chanel, Dior e o italiano Valentino, que faz alta-costura há meio século e é um dos poucos para quem os vestidos sob medida representam uma atividade importante mesmo financeiramente. O mais recente membro é Jean-Paul Gaultier, bancado pelo grupo Hermès, que começou a mostrar sua alta-costura em 1997. O desfile de estréia de Giorgio Armani neste ano foi visto como uma lufada de esperança. O estilista italiano, que é dono de sua própria marca, disse que decidiu se lançar na alta-costura porque via vestidos caríssimos e sofisticados não serem vendidos em suas lojas, mesmo havendo clientes que os adoravam. “Elas não compravam porque precisavam de ajustes de tamanho ou queriam uma manga diferente, um colo menos decotado. Agora faremos como for pedido”, explicou Armani. Os 32 modelos mostrados – na maioria “glamourosos vestidos em rabo de peixe, elegantes e perfeitamente usáveis”, dentro da visão prática do estilista – custarão, sob medida, entre 60 000 e 200 000 reais.
Além de chamar atenção e despertar desejos consumistas, os desfiles servem para apresentar o tema em torno do qual uma grife vai desenvolver suas linhas de prêt–porter e acessórios e até sua estratégia de marketing para a estação. Um bordado em canutilhos e miçangas, por exemplo, pode virar uma estampa de blusas prêt–porter. No ano passado, Karl Lagerfeld convidou Nicole Kidman para assistir ao desfile. Os fotógrafos, que haviam sido obrigados a comparecer vestidos de preto, provocaram um tsunami humano para fotografá-la. Pouco depois, surgiu nas revistas e em outdoors a nova publicidade do perfume Chanel nº 5, com Nicole Kidman posando de diva, assediada por paparazzi (e caída nos braços de Rodrigo Santoro). E agora, nesta primavera européia, as vitrines da loja estão decoradas com uma manequim cercada de flashes, câmeras e bustos de fotógrafos. Tudo bem pensado e planejado, sem nada da “maluquice” das passarelas.
Por Flávia Varella, de Paris – Revista VEJA 2005
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